sábado, 1 de setembro de 2012

Meu sono.

          Depois de tanto esperar não sei bem o quê, depois de me aventurar escrevendo canções sem melodias, depois de me perder no tempo, olhei para o relógio e vi que as horas realmente não param, e que já estava mais do que na hora de repousar meu corpo cansado das tarefas diárias.
          Eram aproximadamente duas da manhã, o sono perambulava o meu redor fazia algumas horas já, e eu simplesmente não queria deixá-lo entrar, deixá-lo me possuir. Sua dança suave se tornou espetáculo aos meus olhos quando simplesmente deixei de tentar escapar dele. Ele deitou em minha cama, tão convidativa, cercada de cobertas e travesseiros macios, ele fez graça ao tentar se mostrar por inteiro, deixando apenas parte de sua aura aparecer. Ele me convidou para deitar com ele, me neguei, queria ver até onde ele seria capaz de chegar para ter os meus olhos fechados e me cativar numa noite de sonhos delirantes.
          Quis desafiá-lo, levantei-me da cadeira próxima à cama, coloquei um vinil no velho toca-discos, e aproveitei a melodia para dançar. Comecei com movimentos leves, devagares, espontâneos. Me agarrei ao guarda-roupa, deixei os cabelos caírem ao rosto e apenas observei a reação do meu sono, daquela aura deitada em minha cama. Ele esboçava um olhar fixo em meu corpo, esperando mais movimentos, mais cenas daquele jogo de sedução mútua.
          Tirei os sapatos, lancei-os ao longe, tive liberdade de balançar os pés no ritmo da música lenta que chegava aos meus ouvidos, e uma vontade de continuar aquilo pela noite adentro tomou conta de mim. Lentamente a blusa de lã que me protegia do frio da madrugada foi escorregando pelos meus braços, e eu só me dei conta disso quando ela finalemente caiu ao chão. Senti a cama estremecer, meu sono se remexeu derrubando alguns travesseiros. Seu olhar me indicava que eu não deveria parar, aquilo o estava alucinando de alguma maneira que não me importava no momento, apenas captei a mensagem que era por minha culpa.
          O calor estava ficando insustentável no meu pequeno quarto, a porta lacrada por uma magia desconhecida, e por vontade minha também. Aquele calor me fazia balançar a cada batida da música. Apoiei-me na parede de canto, deslizando o corpo e deixando meus cabelos fixos e desarrumandos acima de meu corpo já tomado por aquela situação. Lentamente me livrei do resto de impecilhos que deixavam abafada e incomodada pelo suor. Estava livre de tudo, estava fazendo coisas induzidas pelo olhar do meu sono, ele se contorcia em minha cama, se passou a ser tão aconchegante, parecia tão necessitada de mim, de meu corpo, de minha consciência.
          Encaminhei-me à ela, e a cada passo, meu sono se tornava cada vez mais imóvel, sua respiração nunca estivera tão ofegante em suas rondagens, estava estático, apenas seu peito acompanhando o pulmão acelerado, ansiando minha aproximação. Sentei-me de costas, com as pernas quentes balançando na alta cama, fui descendo minha cabeça, e meu sono entrando em meu campo de visão. Ele me surpreende com um beijo, com um beijo mortal, sonífero, domador.
Estava entregue, ele finalmente teve o que queria, minha mente era dele, e ele poderia fazer o que quisesse com ela, sem medo de repressões. Era exatamente tudo o que eu queria naquele momento.
Deitei por completo, recebendo afagos do meu sono, ele aflorava pensamentos em casa toque, em cada centímetro de meu corpo conquistado.
Ele me levou para o alto da cama, me colocando confortavelmente em um travesseiro, me olhando sempre nos olhos, me conquistando cada vez mais. Perdi o controle da dança, estava sendo conduzida por ele, estava agonizando sem seu beijo definitivamente mortal, aquele com que me faria despertar em um outro mundo. Encaixando perfeitamente em meu corpo, ele finalemente me deu o golpe final. Atirou-me uma rosa vermelha escondida sobre uma mesa, senti seu perfume, acariciei-a, e abruptamente ele me deu seu beijo derradeiro. Desfaleci em seu olhar, me perdi completamente naquela visão, e deixei a música controlar nossos movimentos.
          Éramos um só, ele me tomou com nunca antes havia feito. Ele me levou à sua terra distante, e por fim, dormimos.

A casa.

          O dia começou como outro qualquer. Os mesmos problemas, os mesmos pensamentos, e a mesma vontade quase nula de tomar o café da manhã. Me contentei com algumas bolachas, e me desanimei com a casa que ainda dormia.
          Como minha usual distração li algumas páginas de um livro, esperando algum sinal de vida. A casa silenciosa, me trazia paz, me convidava para gritar aos quatro ventos como aquela paz me fazia esquecer de todos os problemas. Não sei quanto tempo se passou até a casa inteira levantar daquele sono preguiçoso de sexta-feira. O problema da inversão de horários bateu à porta e meu humor já se foi midificando. Aquela paz já me deixara.
          Após algumas palavras, sempre muito sérias e dentro da linha com os habitantes da casa, decidi que permanecer aqui só me faria perder o controle sobre meu próprio humor. Procurei uam desculpa rápida, um álibi que me pudesse pra fora da casa. Durante o processo de me ajeitar pra passar o dia na rua, fui chamada algumas vezes por um dos habitantes para ver o caos que a cidade de concreto fornecia aos jornais por mais um dia seguido. Acidentes diversos, para todos os gostos: carro, moto, sequestros, fogo, assalto, atropelamento... Enfim, havia uma infinidade de casos para se horrorizar. E meu pai fazia questão de se horrorizar com cada um deles, e na sequência, me narrar uma longa lição de moral. Aquilo me embrulhava o estômago. Já estava cansada de tanto ouvir aquilo, de tanto fingir que me importo com o que se passa por ai. Eu tinha meus afazeres pelas ruas tão perigosas, era inevitável, e ele sabia que me cuidava ao máximo para evitar futuras reclamações e repreensões.
          Ao me despedir, ao me direcionar à porta, eis que os eixos daquele dia tão monótono mudariam completamente. Sou surpreendida por uma pergunta, por uma simples pergunta, mas que vinda de quem veio, me pareceu suspeita. Há tempos sei de uma insatisfação alheia quanto à cidade de concreto. Dizem que quem não aqui nasceu, não sabe lidar com uma vida perpétua aqui. E neste caso, o que dizem por ai se aplica. E aquela insatisfação que apenas surgia na minha mente de vez em quando tomou forma com aquela simples pergunta. Tudo clareou.
     -Quantos anos ainda faltam pra você se formar? - assim disse meu pai.
Naquele momento não sabia como agir, e apenas respondi. Meus pensamentos voaram. Revirei meus neurônios procurando alguma razão para aquilo tudo. E encontrei. Mais uma vez a casa quer tomar o rumo da minha vida, mais uma vez aquele pesadelo vai começar.
          Dessa vez, eu não me afetei, era exatamente isso que eu queria, um álibi para a minha fuga pessoal, e nem precisei me esforçar muito. Minha própria cidade tratou de resolver isso para mim.
Discutimos sobre termos que não cabem aqui serem ditos, discursamos sobre as possibilidades, e finalmente uma frase implícita se formou, e a casa apenas disse que depois conversaríamos mais, como sempre se faz por aqui.
          Surpresa, feliz, confusa... Não sei bem ao certo, não sei como explicar o que se passou por mim, mas aquele sentimento de perda voltou à minha mente. De repente tudo é nada, e esse nada se tornou tudo. Aquela historinha boba de futuro planejado nunca fez mesmo meu estilo. A partir de hoje tudo foi jogado ao ar, aos ventos da minha cabeça confusa. Talvez não tão confusa agora, mas ocupada planejando e digerindo tudo o que foi dito, e calculando o quanto o navio mudou de direção.